segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Características Clássicas da Tragédia e Características Românticas


Classificação

                  A peça Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é de classificação muito difícil, o que, aliás, não passou despercebido ao próprio autor, que também hesitou na maneira de classificar a sua obra. O facto explica-se precisamente por Garrett ter sido um autor que atravessou a época de transição entre o Classicismo e o Romantismo; sendo educado dentro dos princípios da grande tradição clássica, adoptou por escolha consciente, as doutrinas da estética romântica, especialmente depois da sua longa permanência em França e Inglaterra, países então na vanguarda do grande movimento literário e artístico do Romantismo.
                  O Frei Luís de Sousa apresenta, pois, características de drama (género eminentemente romântico, em que, por vezes, se mistura o trágico e o cómico, o riso e as lágrimas, numa tentativa de reconstituição da realidade contraditória da vida) e também, talvez essencialmente, de tragédia (género clássico por definição, criado pelos gregos); o talvez, pode até dispensar-se, visto que o próprio autor teve a noção do predomínio, na sua peça, das características trágicas. 


                  Características Clássicas da Tragédia
a)     Respeito aproximado da chamada “Regra das três unidades”: unidade de acção (perfeita nesta obra, em que não há divagações estranhas ao tema fundamental); unidade de espaço (quase perfeita); unidade de tempo (quase perfeita, pois a ação, se não decorre dentro das 24 horas da regra, decorre num período de cerca de oito dias);
b)     Tema de natureza elevada e filosófica, de alcance universal e intemporal, válido, portanto em todos os tempos e lugares, dentro dos princípios da religião católica: indissolubilidade do matrimónio, responsabilidade dos pais, direitos dos filhos, necessidade de coerência entre a fé e as ações humanas, impossibilidade, para o homem, de conhecer os desígnios divinos, mistérios do amor divino e da justiça de Deus;
c)      Conflito entre a razão humana (ou o dever e os princípios morais) e os sentimentos individuais e pessoais;
d)     Fragilidade da condição humana perante aquilo que os gregos chamavam a “fatalidade” e os cristãos chamam a “Providência Divina”;
e)     Situação-limite, fora da banalidade quotidiana, que mais relevo dá ao problema central (não é o caso da rotina diária, o regresso de alguém que todos julgam morto; menos vulgar ainda, embora possível, é a situação conjugal de D. Madalena de Vilhena);
f)       Convergência de todos os elementos para desenlace, que desde o início se vem anunciando indiretamente (profecias de Telmo, temores íntimos de D. Madalena);
g)     Catástrofe final – contraste violento entre a situação das personagens no início e no fim da peça. Esse contraste é acentuado pela elevada condição social das personagens;
h)     Resolução final do conflito pelo processo da chamada agnorisis – reconhecimento daquela personagem misteriosa: o Romeiro;
i)       Trágico puro, sem nenhuma mistura de cómico;
j)       Intenção de despertar no espetador os sentimentos de terror e piedade, como forma de libertação ou purificação de paixões, por vezes, recalcadas. A isto chamavam os gregos de cathársis.
k)      Personagens pouco numerosas (não contando com os simples comparsas ou figurantes) e de elevada condição social; isto conduz à concentração da atenção do espetador sobre um assunto bem determinado e também para a grandeza e majestade do conflito, que assim se impõe ao espetador, tornando-se inesquecível e como que o obrigando a meditar nos problemas por ele levantados;
l)       Personagens psicologicamente bem caracterizadas: umas inteiriças, duma só peça (Manuel e Frei Jorge), outras inquietas e nervosas (D. Madalena, Maria), outras divididas contra si mesmas (Telmo e, principalmente, o Romeiro, a mais trágica e grandiosa de todas as personagens, cuja presença enche a peça, ainda quando se supõe morto);
m)    Presença de personagens-confidentes, através das quais se toma conhecimento de factos não directamente observados pelo espetador (primeiro casamento de D. Madalena, batalha de Alcácer-Quibir, suposta morte de D. João de Portugal, buscas ordenadas pela esposa, paixão secreta de D. Madalena por Manuel de Sousa Coutinho em vida do primeiro marido). Estas personagens são, evidentemente, Telmo e Frei Jorge;
n)     Presença, embora indireta e atenuada, de um coro, elemento essencial na tragédia grega, que vai comentando a ação, representando, por assim dizer, os sentimentos do espetador perante o conflito que o impressiona. Em Frei Luís de Sousa o coro pode considerar-se representado pelos frades que cantam o salmo “De profundis” no final do terceiro ato e até, de certo modo, por algumas falas de Telmo.

Características Românticas

a)     Assunto extraído da história nacional, com grande exaltação patriótica e nacionalista, característica eminentemente romântica;
b)     Exaltação do sentimento da liberdade individual dos cidadãos e consequente condenação do absolutismo político, ainda que possa ser senão através duma espécie de resistência passiva, com o sacrifício de qualquer comodidade ou bem pessoal. O incêndio provocado por Manuel de Sousa no seu próprio palácio, se não liberta efetivamente a Pátria oprimida, tem, pelo menos na sua inútil beleza, a força de um símbolo e de um exemplo (que o próprio Manuel de Sousa lhe atribui); 
c)      Reminiscência nítida da própria experiência vivida pelo autor: Garrett bateu-se e sacrificou-se pelos princípios liberais, foi um ardente nacionalista e, como pai, sentiu profundamente o drama de ter dado o ser a uma filha ilegítima, a quem a sociedade “marcaria” injustamente, não tendo em conta a sua inocência;
d)     Mensagem cristã final, que supera a “fatalidade” da antiga tragédia grega: o homem é frágil, sim, mas filho de Deus; Deus põe à prova o coração do homem e a sua fidelidade, para o recompensar, no Céu, eternamente (palavras finais do Prior, no terceiro ato);
e)     Gosto do teatral e espetacular, capaz de comover a sensibilidade das grandes massas de espetadores, geralmente mais permeáveis à sugestão do espetáculo do que ao puro e “aristocrático” prazer da reflexão e meditação grata à mentalidade clássica. Recordem-se os finais dos atos (incêndio no palácio; o «Ninguém...» do Romeiro – prova de exame, por assim dizer, para um ator; a cerimónia da tomada de hábito de Manuel e de D. Madalena). O gesto de Manuel de Sousa de incendiar o seu palácio é tão inútil como belo, na sua coragem e altivez;
f)       Expansão de sentimentos familiares, que vai direita ao coração do público (amor conjugal, paternal, maternal, filial, compaixão por uma vítima inocente, simpatia pela gentileza de Maria, dedicação dum velho serviçal);
g)     Linguagem em prosa e de grande naturalidade no diálogo, em que, aliás Garrett foi grande inovador e autêntico mestre; a pontuação é extraordinariamente expressiva, cheia de reticências, interrogações, exclamações, que reproduzem o ritmo da linguagem falada. A este propósito deve dizer-se que a tragédia clássica era um género essencialmente poético, e portanto escrita sempre em verso. Os românticos, com a sua preocupação de aproximarem a arte da vida, preconizaram o teatro em prosa. O próprio Garrett confessa expressamente a sua hesitação entre a prosa e o verso ao escrever Frei Luís de Sousa, acabando por optar a prosa em nome da naturalidade, e também, como ele diz, por lhe não parecer bem pôr na boca de Manuel de Sousa Coutinho, que, sob o nome religioso de Frei Luís de Sousa, é um dos maiores prosadores clássicos portugueses da época áurea (séc. XVII), outra forma de linguagem que não fosse a mais pura prosa portuguesa. (A propósito recorde-se que a época áurea da poesia clássica portuguesa é o séc. XVI, e a da prosa clássica portuguesa é o séc. XVII);
h)     Maria, personagem eminentemente romântica:
. pela sua idade (o teatro clássico ocupa-se essencialmente de personagens adultas);
. pela doença física (o teatro clássico evitava geralmente este aspeto, considerado pouco nobre); mais ainda, a tuberculose pulmonar, doença que ataca geralmente pessoas na flor da vida, muito vulgar no séc. XIX (em que viveu Garrett), impressionou especialmente os escritores românticos.
. pela sua sensibilidade exaltada, pelo seu temperamento emotivo e nervoso, pelo seu feitio intuitivo (ela adivinha mesmo o que lhe querem ocultar). Estes aspetos psicológicos eram de grande predileção dos românticos;
. pelo seu gosto do romanesco, da fantasia, do folclore (imagina acontecimentos misteriosos, sonha com coisas “lindas mas terríveis”, desejaria ver uma batalha, extasia-se com beleza horrível, tão romântica, do incêndio, lê apaixonadamente romances populares, crê no regresso de D. Sebastião);
. pelo seu sentido de justiça social (os governantes devem acompanhar o povo nas horas más, o rei deve ser um “pai comum”, deve-se trabalhar por “emendar o mundo”);
. por ser vítima inocente da sociedade, cujas exigências não pode, na sua ingenuidade infantil, compreender (só sabe que “aquele pai e aquela mãe são dela” e não quer perdê-los);

. pela sua morte prematura e dramática, que, aliás a “liberta” deste mundo corrompido e cruel, elevando-a à dignidade de “anjo” protetor dos pais imperfeitos e angustiados pela fraqueza da sua condição humana (talvez Garrett se julgasse, em consciência, necessitado de ver redimido o seu amor pecaminoso pela inocência da filha que desse amor nascera).   

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