Classificação
A
peça Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é de classificação muito
difícil, o que, aliás, não passou despercebido ao próprio autor, que também
hesitou na maneira de classificar a sua obra. O facto explica-se precisamente
por Garrett ter sido um autor que atravessou a época de transição entre o
Classicismo e o Romantismo; sendo educado dentro dos princípios da grande
tradição clássica, adoptou por escolha consciente, as doutrinas da estética
romântica, especialmente depois da sua longa permanência em França e
Inglaterra, países então na vanguarda do grande movimento literário e artístico
do Romantismo.
O
Frei Luís de Sousa apresenta, pois, características de drama (género eminentemente romântico,
em que, por vezes, se mistura o trágico e o cómico, o riso e as lágrimas, numa
tentativa de reconstituição da realidade contraditória da vida) e também,
talvez essencialmente, de tragédia
(género clássico por definição, criado pelos gregos); o talvez, pode até
dispensar-se, visto que o próprio autor teve a noção do predomínio, na sua
peça, das características trágicas.
Características Clássicas da Tragédia
a) Respeito aproximado da chamada “Regra das três unidades”: unidade de acção (perfeita nesta obra,
em que não há divagações estranhas ao tema fundamental); unidade de espaço (quase perfeita); unidade de tempo (quase perfeita, pois a ação, se não decorre
dentro das 24 horas da regra, decorre num período de cerca de oito dias);
b) Tema de natureza elevada e filosófica, de alcance universal
e intemporal, válido, portanto em
todos os tempos e lugares, dentro dos princípios da religião católica:
indissolubilidade do matrimónio, responsabilidade dos pais, direitos dos
filhos, necessidade de coerência entre a fé e as ações humanas, impossibilidade,
para o homem, de conhecer os desígnios divinos, mistérios do amor divino e da
justiça de Deus;
c) Conflito
entre a razão humana (ou o dever
e os princípios morais) e os sentimentos
individuais e pessoais;
d) Fragilidade
da condição humana perante
aquilo que os gregos chamavam a “fatalidade” e os cristãos chamam a
“Providência Divina”;
e) Situação-limite, fora da banalidade
quotidiana, que mais relevo dá ao problema central (não é o caso da rotina
diária, o regresso de alguém que todos julgam morto; menos vulgar ainda, embora
possível, é a situação conjugal de D. Madalena de Vilhena);
f) Convergência de todos os elementos para desenlace, que desde o início se vem
anunciando indiretamente (profecias de Telmo, temores íntimos de D. Madalena);
g) Catástrofe
final – contraste violento
entre a situação das personagens no início e no fim da peça. Esse contraste é
acentuado pela elevada condição social das personagens;
h) Resolução
final do conflito pelo
processo da chamada agnorisis – reconhecimento daquela personagem misteriosa: o
Romeiro;
i) Trágico puro, sem nenhuma mistura de cómico;
j)
Intenção
de despertar no espetador os sentimentos
de terror e piedade, como forma de libertação ou purificação de paixões,
por vezes, recalcadas. A isto chamavam os gregos de cathársis.
k) Personagens pouco numerosas (não contando com os simples comparsas ou
figurantes) e de elevada condição social; isto conduz à concentração da atenção do espetador sobre um assunto bem
determinado e também para a grandeza e majestade do conflito, que assim se impõe
ao espetador, tornando-se inesquecível e como que o obrigando a meditar nos
problemas por ele levantados;
l) Personagens psicologicamente bem
caracterizadas: umas inteiriças, duma só peça (Manuel e Frei Jorge), outras
inquietas e nervosas (D. Madalena, Maria), outras divididas contra si mesmas
(Telmo e, principalmente, o Romeiro, a mais trágica e grandiosa de todas as
personagens, cuja presença enche a peça, ainda quando se supõe morto);
m)
Presença
de personagens-confidentes, através
das quais se toma conhecimento de factos não directamente observados pelo espetador
(primeiro casamento de D. Madalena, batalha de Alcácer-Quibir, suposta morte de
D. João de Portugal, buscas ordenadas pela esposa, paixão secreta de D.
Madalena por Manuel de Sousa Coutinho em vida do primeiro marido). Estas
personagens são, evidentemente, Telmo e
Frei Jorge;
n) Presença, embora indireta e atenuada, de um coro,
elemento essencial na tragédia grega, que vai comentando a ação, representando,
por assim dizer, os sentimentos do espetador perante o conflito que o
impressiona. Em Frei Luís de Sousa o coro pode considerar-se
representado pelos frades que cantam o
salmo “De profundis” no final do terceiro ato e até, de certo modo, por algumas
falas de Telmo.
Características
Românticas
a) Assunto extraído da história nacional, com
grande exaltação patriótica e nacionalista, característica eminentemente
romântica;
b) Exaltação
do sentimento da liberdade individual dos
cidadãos e consequente condenação do absolutismo político,
ainda que possa ser senão através duma espécie de resistência passiva, com o
sacrifício de qualquer comodidade ou bem pessoal. O incêndio provocado por
Manuel de Sousa no seu próprio palácio, se não liberta efetivamente a Pátria
oprimida, tem, pelo menos na sua inútil beleza, a força de um símbolo e de um
exemplo (que o próprio Manuel de Sousa lhe atribui);
c) Reminiscência
nítida da própria experiência vivida pelo autor: Garrett bateu-se e sacrificou-se pelos
princípios liberais, foi um ardente nacionalista e, como pai, sentiu profundamente
o drama de ter dado o ser a uma filha ilegítima, a quem a sociedade “marcaria”
injustamente, não tendo em conta a sua inocência;
d) Mensagem
cristã final, que supera a “fatalidade” da antiga
tragédia grega: o homem é frágil, sim, mas filho de Deus; Deus põe à prova o
coração do homem e a sua fidelidade, para o recompensar, no Céu, eternamente
(palavras finais do Prior, no terceiro ato);
e) Gosto do teatral e espetacular, capaz de comover a sensibilidade das grandes
massas de espetadores, geralmente mais permeáveis à sugestão do espetáculo do
que ao puro e “aristocrático” prazer da reflexão e meditação grata à
mentalidade clássica. Recordem-se os finais dos atos (incêndio no palácio; o
«Ninguém...» do Romeiro – prova de exame, por assim dizer, para um ator; a
cerimónia da tomada de hábito de Manuel e de D. Madalena). O gesto de Manuel de
Sousa de incendiar o seu palácio é tão inútil como belo, na sua coragem e
altivez;
f) Expansão
de sentimentos familiares, que vai direita ao coração do público
(amor conjugal, paternal, maternal, filial, compaixão por uma vítima inocente,
simpatia pela gentileza de Maria, dedicação dum velho serviçal);
g) Linguagem em prosa e
de grande naturalidade no diálogo,
em que, aliás Garrett foi grande inovador e autêntico mestre; a pontuação é
extraordinariamente expressiva, cheia de reticências, interrogações,
exclamações, que reproduzem o ritmo da linguagem falada. A este propósito deve
dizer-se que a tragédia clássica era um género essencialmente poético, e
portanto escrita sempre em verso. Os românticos, com a sua preocupação de
aproximarem a arte da vida, preconizaram o teatro em prosa. O próprio Garrett
confessa expressamente a sua hesitação entre a prosa e o verso ao escrever Frei
Luís de Sousa, acabando por optar a prosa em nome da naturalidade, e
também, como ele diz, por lhe não parecer bem pôr na boca de Manuel de Sousa
Coutinho, que, sob o nome religioso de Frei Luís de Sousa, é um dos maiores
prosadores clássicos portugueses da época áurea (séc. XVII), outra forma de
linguagem que não fosse a mais pura prosa portuguesa. (A propósito recorde-se
que a época áurea da poesia clássica portuguesa é o séc. XVI, e a da prosa
clássica portuguesa é o séc. XVII);
h) Maria, personagem eminentemente romântica:
. pela sua idade (o teatro clássico ocupa-se
essencialmente de personagens adultas);
. pela doença física (o teatro clássico
evitava geralmente este aspeto, considerado pouco nobre); mais ainda, a
tuberculose pulmonar, doença que ataca geralmente pessoas na flor da vida,
muito vulgar no séc. XIX (em que viveu Garrett), impressionou especialmente os
escritores românticos.
. pela sua sensibilidade exaltada, pelo seu
temperamento emotivo e nervoso, pelo seu feitio intuitivo (ela adivinha mesmo o
que lhe querem ocultar). Estes aspetos psicológicos eram de grande predileção
dos românticos;
. pelo seu gosto do romanesco, da fantasia,
do folclore (imagina acontecimentos misteriosos, sonha com coisas “lindas mas
terríveis”, desejaria ver uma batalha, extasia-se com beleza horrível, tão
romântica, do incêndio, lê apaixonadamente romances populares, crê no regresso
de D. Sebastião);
. pelo seu sentido de justiça social (os
governantes devem acompanhar o povo nas horas más, o rei deve ser um “pai
comum”, deve-se trabalhar por “emendar o mundo”);
. por ser vítima inocente da sociedade, cujas exigências não
pode, na sua ingenuidade infantil, compreender (só sabe que “aquele pai e
aquela mãe são dela” e não quer perdê-los);
. pela sua morte prematura e dramática, que,
aliás a “liberta” deste mundo corrompido e cruel, elevando-a à dignidade de
“anjo” protetor dos pais imperfeitos e angustiados pela fraqueza da sua
condição humana (talvez Garrett se julgasse, em consciência, necessitado de ver
redimido o seu amor pecaminoso pela inocência da filha que desse amor
nascera).
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