segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Crónicas a propósito d'Os Maias

E mais Eça
Carlos voltou para a cama e, feliz, recostou-se a fumar um cigarro lânguido. Minto: era um cigarro açoriano. Os lânguidos tinham acabado na véspera.

Ao longo das últimas semanas, o Expresso pediu a vários autores que escrevessem uma continuação de Os Maias, de Eça de Queirós, no âmbito de uma iniciativa intitulada Eça Agora. A VISÃO, sempre à frente da imprensa portuguesa em geral e do Expresso em particular, publica hoje um texto em que eu continuo e termino não apenas Os Maias, mas também A Relíquia, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Talvez assim o Expresso aprenda a ser um pouco mais ambicioso e faça um esforço para passar a oferecer mais e melhor aos seus leitores.)
Carlos da Maia acordou cansado e dorido. Na véspera, pouco depois de manifestar um fastio pela vida que o impedia até de estugar o passo para se apropriar de um tesouro, por maior que fosse, largara a correr para apanhar um táxi. E agora, o homem que as gazetas designavam por sportman, estava exausto por causa de uma corrida. Carlos começava a aborrecer-se com as ironiazinhas do narrador, e sonhava com recursos estilísticos que lhe magoassem menos as pernas.
Sentou-se na cama a reflectir na teoria da vida que desenvolvera com Ega, na noite anterior, e foi tomado por um desencanto profundo que, um século mais tarde, iria simultaneamente entusiasmar o prof. Carlos Reis e enfadar gerações inteiras de alunos do 9.º ano de escolaridade. Era uma espécie de fatalismo, próprio de um homem que deixara de ter esperança na vida e no ser humano, depois de o mundo ter considerado um tanto grotesco o seu entendimento do conceito de fraternidade, no qual ele se empenhara bastante.
Mas a meio da manhã, quando tudo parecia vão e sem sentido, um criado entrou no quarto com uma carta de Maria Eduarda. Eram grandes novidades. Já não iria casar com Mr. de Trelain, mas sim com o Primo Basílio, um cavalheiro que também morava em França. Era um homem que, sendo primo, estava apto a saciar o seu desejo de manter relações carnais com familiares próximos, que o amor com Carlos viera acender, mas não era verdadeiramente primo dela, pelo que se evitava não só o estigma social mas também a possibilidade de ter filhos que achassem graça àqueles programas com vídeos retirados da internet.
Carlos levantou-se de um salto, por lhe parecer que o mundo podia começar a consertar-se assim, em passos lentos mas firmes. Pegou na gazeta e leu, com ânimo cada vez maior: "Celebra-se hoje, em Leiria, o casamento do Padre Amaro com a Dona Maria do Patrocínio." Era a tia de Teodorico Raposo, um janota com o qual se cruzara no Egipto. Mais uma vez, o mundo compunha-se: o padre Amaro contraía matrimónio, como desejava, mas não ficava sem castigo, consistindo este, sem dúvida, na contemplação frequente da nudez da velha. E a Titi encontrava companhia num membro do clero, o que era ao mesmo tempo santo e pecaminoso, que é como as coisas sabem melhor.
Carlos voltou para a cama e, feliz, recostou-se a fumar um cigarro lânguido. Minto: era um cigarro açoriano. Os lânguidos tinham acabado na véspera.


Ricardo Araújo Pereira
in Visão, Quinta feira, 19 de Setembro de 2013

Crónicas a propósito d'Os Maias

Bom dia. 174 pessoas gostam disto
Sou filho único, mas houve um tempo em que desejei muito ter uma irmã. Foi quando, aos 14 anos, li Os Maias e percebi que dois irmãos podem divertir-se imenso  

Eu sou filho único, mas houve um tempo em que desejei muito ter uma irmã. Foi quando, aos 14 anos, li Os Maias e percebi que dois irmãos podem divertir-se imenso. Após a leitura da obra de Eça de Queirós, compreendi a razão pela qual a fraternidade é um valor tão prezado. Os clássicos iluminam-nos, não há dúvida nenhuma. No entanto, nem todos os leitores podem ter a minha sensibilidade, e por isso é natural que o livro não comova toda a gente como me comoveu a mim. A Fnac acaba de lançar uma campanha que sugere: "Troque Os Maias pela Mayer". O anúncio gerou tanto sarrabulho no Facebook que foi rapidamente retirado. Este caso tem tamanha quantidade de factos a exigir reflexão que até tenho medo que me faça mal.
 
Primeiro, deve assinalar-se que uma campanha tem de ser mesmo muito canhestra para ser reprovada no Facebook. As pessoas do Facebook são, em geral, fáceis de agradar: declaram amizade umas às outras sem dificuldade nenhuma e qualquer proclamação simples como, por exemplo, "Ui, está tanto frio!", pode receber centenas de polegares aprovadores. Não é fácil irritar gente desta. E, ainda assim, a Fnac conseguiu-o.
Ora, a campanha não era assim tão má. Diz-se que a Fnac propunha um péssimo negócio ao cliente. Como um supermercado que dissesse: "Troque dois quilos de bife do lombo por uma lata de salsichas." Mas o anúncio não referia a quem pertenciam Os Maias e "a Mayer". Quem disse que é o cliente que entrega Os Maias e a Fnac que dá "a Mayer", e não o contrário? A campanha propõe uma troca. Tanto pode ser "Troque os seus Maias pela nossa Mayer" como "Troque os nossos Maias pela sua Mayer". Se nos perguntam: "Queres trocar dois quilos de lombo por uma lata de salsichas?", a resposta correcta é: "Sim, onde é que eu entrego a minha lata de salsichas?"

Além do mais, a troca faz especial sentido. Quem conhece Os Maias e a obra de Stephenie Mayer não pode deixar de verificar uma tautologia evidente. De acordo com a sinopse fornecida pela Wikipédia, os livros de Mayer contam a história de um vampiro vegetariano. É natural que quem tomou contacto com Os Maias apenas através dos apontamentos Europa-América ainda não tenha dado conta da semelhança. Para esses, desvendo um pouco mais do enredo. Sucede que o vampiro se apaixona por uma rapariga por cujo sangue se sente muitíssimo atraído - o que é problemático, uma vez que ela poderia levar a mal que ele lhe cravasse os dentes no pescoço para lhe beber o sangue. Sabe-se como são as mulheres: qualquer pequena coisa as pode indispor. Ou seja, temos um rapaz que se interessa por uma rapariga e o sangue dela constitui um problema. Exactamente a mesma história de Carlos e Maria Eduarda da Maia.

Ricardo Araújo Pereira
in Visão, Quinta feira, 9 de Fevereiro de 2012

Os Maias - Contextualização histórico-cultural

Eça de Queirós - Os Maias

Contextualização histórico-cultural

Segunda metade do século XIX

Crise da implantação do liberalismo em Portugal

Final do Romantismo

·      1865 – Questão Coimbrã:
o   polémica entre Feliciano de Castilho e Antero de Quental que culmina na carta deste último intitulada «Bom Senso e Bom Gosto».
o   Manifestação de rebeldia da geração intelectual que se formara em Coimbra contra Castilho e o Ultra-Romantismo. Chefiam o conflito Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins;

·       Geração de 70.
o   procura fazer uma revolução cultural através da revisão de valores; transformação política, económica e religiosa; reformar os estilos de literatura e de vida;
o   Surge uma nova poesia contra os conceitos vigentes de cariz literário, mas também político, histórico e filosófico;
o   visava a reforma cultural ao nível dos valores, da literatura e da própria vida portuguesa, aproximando-a do modelo europeu.
o   figuras proeminentes desta geração foram Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins. Destacam-se numa perspectiva secundária, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga, Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Jaime Batalha Reis, Guilherme de Azevedo, Alberto Sampaio, Adolfo Coelho, Augusto Soromenho;
o   os mentores desta geração, ao promoverem uma autêntica revolução cultural, permitiram a abertura de um caminho para o progresso do país nas suas variadas áreas.

·      1871 – Conferências Democráticas do Casino Lisbonense
o   realizadas na Primavera de 1871 pelo grupo do Cenáculo: artistas e literatos que trazem de Coimbra para Lisboa a boémia e a inquietação política e social que culminaria nas Conferências Democráticas;
o   pretendem aproximar Portugal do mundo moderno, para que se estudassem as condições de transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa;
o   estas conferências visavam alertar para os vários problemas responsáveis pela decadência do país e seu afastamento da Europa culta; promover conferências sobre as ideias que vigoravam na Europa, de forma a modernizar o país e agitar a opinião pública;
o   Inicialmente, estavam projetadas 20 conferências, mas apenas se realizaram 5, uma vez que o Governo mandou encerrar a sala e proibiu a realização das restantes, «por ofenderem clara e diretamente as leis do Reino».

  • Algumas características apontadas por Eça na 4ª conferência intitulada «o realismo como nova expressão da arte»:
      • a negação da arte pela arte;
      • a proscrição do convencional, do enfático, do piegas;
      • a abolição da retórica oca;
      • a reação contra o Romantismo;
      • a análise com o objectivo de encontrar a verdade absoluta;
      • a anatomia do carácter, a crítica do homem com o objectivo de distinguir o falso do verdadeiro e de condenar o que de negativo a sociedade revela, assumindo-se, assim, como uma didática de comportamento social.

·      Realismo:
o   Nova corrente artística que pretende cortar com o sentimentalismo;
o    Negação da arte pela arte;
o   Observação fria e objectiva da realidade;
o   Análise psicológica das personagens, determinada por três factores: hereditariedade, educação e meio;
o   Crítica de costumes e reforma social.


Os Maias - planos de ação