E mais Eça
Carlos voltou para a cama e, feliz, recostou-se a
fumar um cigarro lânguido. Minto: era um cigarro açoriano. Os lânguidos tinham
acabado na véspera.
Ao longo das últimas semanas, o Expresso pediu a vários autores que
escrevessem uma continuação de Os Maias, de Eça de Queirós, no âmbito de uma
iniciativa intitulada Eça Agora. A VISÃO, sempre à frente da imprensa
portuguesa em geral e do Expresso em particular, publica hoje um texto em que
eu continuo e termino não apenas Os Maias, mas também A Relíquia, O Crime do
Padre Amaro e O Primo Basílio. Talvez assim o Expresso aprenda a ser um pouco
mais ambicioso e faça um esforço para passar a oferecer mais e melhor aos seus
leitores.)
Carlos da Maia acordou cansado e dorido. Na véspera, pouco depois de
manifestar um fastio pela vida que o impedia até de estugar o passo para se
apropriar de um tesouro, por maior que fosse, largara a correr para apanhar um
táxi. E agora, o homem que as gazetas designavam por sportman, estava exausto
por causa de uma corrida. Carlos começava a aborrecer-se com as ironiazinhas do
narrador, e sonhava com recursos estilísticos que lhe magoassem menos as
pernas.
Sentou-se na cama a reflectir na teoria da vida que desenvolvera com
Ega, na noite anterior, e foi tomado por um desencanto profundo que, um século
mais tarde, iria simultaneamente entusiasmar o prof. Carlos Reis e enfadar
gerações inteiras de alunos do 9.º ano de escolaridade. Era uma espécie de
fatalismo, próprio de um homem que deixara de ter esperança na vida e no ser
humano, depois de o mundo ter considerado um tanto grotesco o seu entendimento
do conceito de fraternidade, no qual ele se empenhara bastante.
Mas a meio da manhã, quando tudo parecia vão e sem sentido, um criado
entrou no quarto com uma carta de Maria Eduarda. Eram grandes novidades. Já não
iria casar com Mr. de Trelain, mas sim com o Primo Basílio, um cavalheiro que
também morava em França. Era um homem que, sendo primo, estava apto a saciar o
seu desejo de manter relações carnais com familiares próximos, que o amor com
Carlos viera acender, mas não era verdadeiramente primo dela, pelo que se
evitava não só o estigma social mas também a possibilidade de ter filhos que
achassem graça àqueles programas com vídeos retirados da internet.
Carlos levantou-se de um salto, por lhe parecer que o mundo podia
começar a consertar-se assim, em passos lentos mas firmes. Pegou na gazeta e
leu, com ânimo cada vez maior: "Celebra-se hoje, em Leiria, o casamento do
Padre Amaro com a Dona Maria do Patrocínio." Era a tia de Teodorico
Raposo, um janota com o qual se cruzara no Egipto. Mais uma vez, o mundo
compunha-se: o padre Amaro contraía matrimónio, como desejava, mas não ficava
sem castigo, consistindo este, sem dúvida, na contemplação frequente da nudez
da velha. E a Titi encontrava companhia num membro do clero, o que era ao mesmo
tempo santo e pecaminoso, que é como as coisas sabem melhor.
Carlos voltou para a cama e, feliz, recostou-se a fumar um cigarro
lânguido. Minto: era um cigarro açoriano. Os lânguidos tinham acabado na
véspera.
Ricardo Araújo Pereira
in Visão, Quinta feira, 19 de Setembro de 2013
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