O
mais conhecido dos sermões de Vieira: “O Sermão de Santo António aos peixes”
Escolhendo como auditório, e à semelhança do ocorrido
outrora com Santo António, em Itália, os peixes, já que os homens (neste caso
os colonos de São Luís do Maranhão, em 1663) pare- cem ser maus ouvintes e não
aceitar a pregação, Vieira elabora uma ampla alegoria em que se propõe
louvar, por um lado, e criticar, por outro, os peixes (atribuindo-lhes
qualidades que não encontra nos homens, no primeiro caso, e criticando-lhes
defeitos comuns aos mesmos homens, no segundo caso).
Do mesmo modo que os louvores dos peixes haviam sido
distribuídos por dois capítulos, em louvores dos peixes em geral e de alguns
peixes em particular, também os defeitos vão ocupar dois capítulos,
abordando-se primeiro os defeitos em geral e depois os defeitos dos peixes em
particular.
Assim, no capítulo IV, Vieira critica os defeitos
gerais dos peixes, o maior dos quais é que se comem uns aos outros, e mais
grave ainda, “são os grandes que comem os pequenos”. Para mostrar aos
peixes quão terrível é este defeito, convida-os a olhar para terra e ver como
também os homens se “comem” (no sentido metafórico de “exploram”) uns
aos outros e o fazem da mesma maneira: “os pequenos são o pão do quotidiano
dos grandes”, sendo comidos diariamente como o pão, e não apenas
ocasionalmente, como os outros alimentos. É, pois, a universal antropofagia
cometida pelos grandes que Vieira critica em páginas sublimes – e, mais grave
ainda, em terra os homens comem-se em vida e na morte, apontando como exemplos
o que sucede com um moribundo [...].
Outro defeito dos peixes é o de correrem atrás de iscos,
falsos chamarizes que os levam à morte – também os homens, que vão atrás de
engodos, movidos pela vaidade e por falsos valores. O capítulo V é consagrado
aos defeitos de alguns peixes em particular: – os roncadores, que, como
S. Pedro, que depois de muito fanfarronar, negara Cristo, roncam muito e fazem
pouco; os pegadores, que têm o costume de se pegarem a outros peixes
maiores, sendo deles parasitas – e que não se lembram que, se aqueles a quem se
pegam forem apanhados, eles irão juntamente; os voadores, peixes que se
não contentam com nadar, querem também voar e isso faz com que sejam mais
facilmente apanhados pelos marinheiros; e finalmente o polvo1,
perito na arte da dissimulação e, por isso, o “maior traidor do mar”,
segundo Vieira, por se fazer da cor e forma dos sítios em que se encontra, a m
de melhor abraçar e matar as presas.
É óbvio que todos estes defeitos dos
peixes têm o seu correspondente nos comportamentos dos homens, também “roncadores”
inconsequentes, “pegadores parasitas”, ambiciosos como os voadores e
traidores e dissimulados como o polvo.
O capítulo VI é de Conclusão ou Peroração: “Com
esta última advertência me despido, de vós, meus peixes”, convidando-os a
louvar a Deus: “louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos”,
porque “vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em
tantas espécies [...]; louvai a Deus que vos sustenta; louvai a Deus que vos
conserva; louvai a Deus que vos multiplica; [...] e assim como no princípio vos
deu sua bênção, vo-la dê também agora”.
Neste sermão Vieira serve-se dos argumentos habituais:
exemplos e frases, extraídos das Escrituras e dos Doutores da Igreja,
minuciosamente dissecadas e analisadas, como se as palavras e o seu aspeto
fónico e semântico fossem portadoras de significação mais profunda; serve-se
também da descrição anatómica dos peixes, considerando que a sua forma externa
é imagem e símbolo dos seus vícios ou virtudes; para além destes argumentos, é
visível a construção rigorosa e geométrica do sermão e do seu discurso, o
recurso a jogos de palavras e a propriedade e riqueza vocabular.
PAIS, Amélia Pinto,
2004. História da Literatura em Portugal – Uma perspetiva didática. Vol.
1. Época Medieval e Clássica. Porto: Areal (pp. 221-223)
1. Que, como sabemos, não
é um peixe, mas um molusco cefalópode; a tanto não chegavam os conhecimentos de
Vieira.
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