terça-feira, 6 de maio de 2014

Excertos dos episódios da Crónica de Costumes e perguntas de interpretação (com a respetiva resposta)

Lê atentamente os excertos e responde de forma completa às questões que se seguem:
Excerto 1 – Jantar no Hotel Central

«Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um romance… Isto levou logo a falar-se do “Assomoir”, de Zola e do realismo: e o Alencar imediatamente, limpando os bigodes dos pingos de sopa, suplicou que se não discutisse, à hora asseada do jantar, essa literatura “latrinária”. Ali todos eram homens de asseio, de sala, hem? Então, que se não mencionasse o “excremento”!
Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes análises, apoderando-se da Igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finança, de todas as coisas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadáveres num anfiteatro; esses estilos novos, tão preciosos e tão dúcteis, apanhando em flagrante a linha, a cor, a palpitação mesma da vida; tudo isso (que ele, na sua confusão mental, chamava a “ideia nova”), caindo assim de chofre e escangalhando a catedral romântica, sob a qual tantos anos ele tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o desgosto literário da sua velhice.»
                                                                                                       Cap. VI, pp.162-163

1.     Explicita o confronto de ideias, presente neste excerto, indicando os seus defensores. 
O excerto apresentado, pertencente ao Jantar no Hotel Central, é representativo do grande confronto de ideias relativamente à literatura que se estabelece neste evento.
       Carlos e Alencar são as personagens que se destacam neste fragmento, como representantes do Realismo e do Romantismo, respetivamente.
Carlos, tal como Ega, defende os ideais do Realismo, referindo que o romance realista é o meio privilegiado para expor/descrever as situações reais do quotidiano, como é exemplo o crime da Mouraria.
Por seu turno, Alencar insurge-se contra essa “ideia nova”, designando-a de “latrinária”, devido à forma como «esses livros poderosos e vivazes» expunham a sociedade, denunciando os seus pontos fracos e criticando as suas diversas áreas «Igreja, Realeza, Burocracia, Finanças». Além disso, não concordava com o facto do naturalismo se ter imposto de tal forma que acabara por destruir os ideais românticos que Alencar defendia, tornando-se no «desgosto literário da sua velhice». Alencar considera ainda que essa literatura nova está a disseminar-se na sociedade pelo poder dos “milhares de edições” das obras que são publicadas, “escangalhando” a realidade e a arte anteriormente existentes. Tendo em conta esta situação, Alencar utiliza, inclusivamente, vocabulário menos digno relativamente ao seu estatuto social quebrando o verniz de civilização.
Este excerto permite, desta forma fazer uma caracterização de algumas das ideias e comportamentos da alta sociedade do século XIX.


Excerto 2 – Corrida de Cavalos
«À entrada do hipódromo, abertura escalavrada num muro de quintarola, o faetonte teve de parar atrás do dog-cart do homem gordo – que não podia também avançar porque a porta estava tomada pela caleche de praça, onde um dos sujeitos de flor ao peito berrava furiosamente com um polícia. Queria que se fosse chamar o Sr. Savedra! O Sr. Savedra, que era do Jockey Club, tinha-lhe dito que ele podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lho dissera na véspera, na botica do Azevedo! Queria que fosse chamar o Sr. Savedra! O polícia bracejava, enfiado. E o cavalheiro, tirando as luvas, ia abrir a portinhola, esmurrar o homem – quando, trotando na sua grande horsa, um municipal de punho alçado correu, gritou, injuriou o cavalheiro gordo, fez rodar para fora a caleche. Outro municipal intrometeu-se, brutalmente. Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram para um portal, espavoridas. E através do rebuliço, da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente, um realejo tocando a “Traviata”.
O faetonte entrou – atrás do dog-cart, onde o homem gordo, a estourar de fúria, voltava ainda para trás a face escarlate, jurando dar parte do municipal.
- Tudo isto está arranjado com decência – murmurou Craft.»
                                                                                                                               Cap. X, pág.313

2.     Interpreta o comentário de Craft, tendo em conta o excerto. 
Craft refere-se, de forma irónica, à forma como as pessoas se organizavam junto da entrada para o hipódromo, visto que, em vez da «decência» própria de um evento que reunia a alta sociedade lisboeta, encontrou uma enorme falta de civismo e de decoro.
As pessoas que se encontravam à porta do hipódromo não sabiam estacionar devidamente as suas viaturas, impedindo a entrada de outros, e «um dos sujeitos de flor ao peito» exigia a sua entrada sem pagar, criando uma grande confusão, entre gritos e ameaças de agressão física, o que originou um clima de insegurança nalgumas senhoras que aí se encontravam. A contrastar com todo este «rebuliço», ouvia-se um realejo de fundo que tocava a «Traviata», de forma a transmitir a sensação aparente de uma ambiente requintado.
A referência do “[sujeito] de flor ao peito” de que o Sr. Savedra lhe tinha prometido que podia entrar sem pagar revela, claramente, a maneira de ser do português que tenta sempre corromper o estabelecido, tentar obter uma “borla”, utilizar uma “cunha” para seu benefício.
As referências “muro de quintarola”, “homem gordo”, “berrava”, assim como toda a descrição ao hipotético cenário de agressão física são ilustrativas da decadência do espaço e das pessoas que ali estavam e da falta de elegância existente neste acontecimento da alta sociedade lisboeta.
A (in)”decência” caracterizada no excerto prova a dicotomia Ser vs Parecer patente na obra e o quebrar do verniz por todos aqueles que pretendem ascender a um patamar civilizacional impossível de alcançar pelo exterior. 

Excerto 3 – Jantar na Casa dos Gouvarinho
«E o conde, que a admirava também, gabava-lhe sobretudo o espírito, a instrução. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser estúpida… O conde afirmou logo com exuberância que não gostava também de literatas; sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na biblioteca...
[…] Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas literárias, sabendo dizer coisas sobre o sr.Thiers, ou sobre o sr. Zola, é um monstro, um fenómeno que cumpria recolher a uma companhia de cavalinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.»
                                                                                                            Cap. XII, pp.397-398

3.     Clarifica a opinião de Ega sobre as mulheres. 

João da Ega defendia uma opinião muito conservadora acerca das mulheres, referindo que o dever delas «era primeiro ser bela, e depois ser estúpida».
Para ele, a mulher deveria ser encarada apenas como um elemento decorativo, destituída de qualquer instrução ou cultura literária. Aliás, era extremista ao ponto de considerar a mulher «com prendas literárias» «um monstro». Assim, no seu entender, «a mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem», ou seja, remeter-se à sua função de boa esposa e boa dona de casa, desprovida de opiniões sobre qualquer assunto que envolvesse alguma demonstração da sua inteligência.
Esta opinião contrasta com a personalidade e caráter visionário de João da Ega no que concerne à literatura, tal como com a relação de amizade e admiração que tem por Maria Eduarda, mulher culta e inteligente, motivos que levam a questionar a veracidade desta opinião.
Poder-se-á, então, concluir que Ega tece este comentário com ironia, e no sentido de provocar a exposição de ideias, de modo a perceber as opiniões alheias.

Excerto 4 – Os Jornais
« - Quer cem mil réis por tudo isso? – perguntou Carlos.
O Palma ficou um momento indeciso, ajeitando as lunetas com os dedos moles. […] Ega acercou-se, tocou com bonomia no ombro do jornalista:
- Cem mil são uma linda soma, Palma amigo! E olhe que se lhe oferecem por delicadeza consigo. Porque artiguinhos como este da «Corneta», apresentados na Boa Hora, levam à grilheta!... […]
Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de açúcar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil réis…»

                                                                                                                   Cap. XV, pág. 541   

4.     Eça de Queirós serve-se das personagens-tipo para criticar a sociedade portuguesa. Explica a importância da personagem Palma Cavalão na construção da crítica neste episódio. 
Palma Cavalão é o diretor do jornal «Corneta do Diabo» e surge como símbolo do jornalismo em Portugal.
Esta personagem tipifica o jornalista corrupto, que se deixa subornar, publicando notícias difamatórias sobre pessoas conceituadas da sociedade – Carlos da Maia e Maria Eduarda. Representa o meio jornalístico barato, escandaloso, sem escrúpulos e decadente de Lisboa. Palma Cavalão é desonesto e encara o jornalismo como uma forma de ganhar dinheiro, desrespeitando os princípios básicos do jornalismo – a veracidade e o interesse geral das notícias.
Representa ainda a hipocrisia existente neste meio, já que refere que aceita “os cem mil réis” “por ser entre cavalheiros, e com amizade”, quando, na realidade, o que lhe interessa é receber simplesmente aquela quantia de dinheiro.
Assim, é através desta personagem e do episódio dos Jornais que Eça de Queirós apresenta o jornalismo decadente e corrupto do nosso país.

Excerto 5 – Sarau da Trindade

«(…) – o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da sonata, martelando sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quase vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cansadas, bocejavam por trás dos leques.
[…] O Cruges… O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição dele, aquela coisa triste?
- É de Beethoven, srª D. Maria Cunha, a “Sonata Patética”.»
                                                                                                       Cap. XVI, pág. 596

5.     Refere de que modo este excerto contribui para a crítica que Eça pretende fazer à sociedade portuguesa. 

            O excerto refere-se ao episódio do sarau no Teatro da Trindade, evento que mostra em todo o seu esplendor o gosto convencional e fossilizado dos portugueses, dominados por valores caducos, enraizados num sentimentalismo educacional e social ultrapassados.
            Neste sarau, o maestro Cruges exibe todo o seu talento ao tocar a «Sonata Patética» de Beethoven, no entanto a plateia que assiste ao espetáculo revela uma grande falta de cultura, já que demonstra um profundo desinteresse, assim como o desconhecimento da composição que está a ser tocada.
            As senhoras que ainda assistiam ao sarau mostram-se entediadas e aborrecidas, bocejando, ilustrando a falta de espírito crítico que caracterizava a sociedade portuguesa, assim como a desvalorização de tudo o que não era convencional.
            Esta situação de desfasamento entre a cultura que as personagens parecem ter e a que têm realmente, faz com que este momento, que seria dos poucos bons momentos do Sarau, se torne num fiasco.
    
Excerto 6 – Passeio Final
       
«Riam ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear… Não se abandonar a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dia suaves. E, nesta palidez, deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo… Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.»

                                                                                                                   Cap. XVIII, pág.715

6.     Comprova que a vida de Carlos da Maia foi marcada pelo «fatalismo muçulmano». 

Ao longo da obra Os Maias percebemos que a personagem Carlos da Maia vai perdendo o fulgor e entusiasmo que a caracterizava na sua juventude para se tornar num acomodado da sociedade.
Por conseguinte, vai aceitando com tranquilidade as contrariedades que foram surgindo ao longo da sua vida: primeiro, a relação incestuosa com Maria Eduarda; depois a morte do seu avô; por último, a separação de Maria Eduarda.
Ao contrário do seu pai, que suportou a dor da perda dos dois pilares da sua vida – a mãe e a esposa -, Carlos tenta prosseguir com a sua vida, aceitando com naturalidade essas mudanças como se fizessem parte de um destino ao qual não pode fugir. Deste modo, desiste de lutar, de estabelecer objetivos na sua vida e decide vivê-la de acordo com aquilo que vai surgindo, deixando «o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo…».
Em suma, se Carlos não tiver “apetites”, também não terá “contrariedades”, assim, se “nada desejar e nada recear”, a sua vida terá esse desenrolar calmo que agora se impõe.


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