Lê atentamente os
excertos e responde de forma completa às questões que se seguem:
Excerto
1 – Jantar no Hotel Central
«Esse mundo de fadistas, de faias,
parecia a Carlos merecer um estudo, um romance… Isto levou logo a falar-se do
“Assomoir”, de Zola e do realismo: e o Alencar imediatamente, limpando os
bigodes dos pingos de sopa, suplicou que se não discutisse, à hora asseada do
jantar, essa literatura “latrinária”. Ali todos eram homens de asseio, de sala,
hem? Então, que se não mencionasse o “excremento”!
Pobre Alencar! O naturalismo;
esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes
análises, apoderando-se da Igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finança, de
todas as coisas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão,
como a cadáveres num anfiteatro; esses estilos novos, tão preciosos e tão
dúcteis, apanhando em flagrante a linha, a cor, a palpitação mesma da vida;
tudo isso (que ele, na sua confusão mental, chamava a “ideia nova”), caindo
assim de chofre e escangalhando a catedral romântica, sob a qual tantos anos
ele tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e
tornara-se o desgosto literário da sua velhice.»
Cap.
VI, pp.162-163
1. Explicita o confronto de ideias, presente
neste excerto, indicando os seus defensores.
O excerto apresentado, pertencente ao Jantar no
Hotel Central, é representativo do grande confronto de ideias relativamente à
literatura que se estabelece neste evento.
Carlos e Alencar são as personagens que
se destacam neste fragmento, como representantes do Realismo e do Romantismo,
respetivamente.
Por seu turno, Alencar insurge-se contra essa
“ideia nova”, designando-a de “latrinária”, devido à forma como «esses livros
poderosos e vivazes» expunham a sociedade, denunciando os seus pontos fracos e
criticando as suas diversas áreas «Igreja, Realeza, Burocracia, Finanças». Além
disso, não concordava com o facto do naturalismo se ter imposto de tal forma
que acabara por destruir os ideais românticos que Alencar defendia, tornando-se
no «desgosto literário da sua velhice». Alencar considera ainda que essa
literatura nova está a disseminar-se na sociedade pelo poder dos “milhares de
edições” das obras que são publicadas, “escangalhando” a realidade e a arte
anteriormente existentes. Tendo em conta esta situação, Alencar utiliza,
inclusivamente, vocabulário menos digno relativamente ao seu estatuto social
quebrando o verniz de civilização.
Este excerto permite, desta forma fazer uma
caracterização de algumas das ideias e comportamentos da alta sociedade do
século XIX.
Excerto 2 – Corrida de
Cavalos
«À entrada do hipódromo, abertura
escalavrada num muro de quintarola, o faetonte teve de parar atrás do dog-cart do homem gordo – que não podia
também avançar porque a porta estava tomada pela caleche de praça, onde um dos
sujeitos de flor ao peito berrava furiosamente com um polícia. Queria que se
fosse chamar o Sr. Savedra! O Sr. Savedra, que era do Jockey Club, tinha-lhe
dito que ele podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lho dissera na véspera,
na botica do Azevedo! Queria que fosse chamar o Sr. Savedra! O polícia
bracejava, enfiado. E o cavalheiro, tirando as luvas, ia abrir a portinhola,
esmurrar o homem – quando, trotando na sua grande horsa, um municipal de punho
alçado correu, gritou, injuriou o cavalheiro gordo, fez rodar para fora a
caleche. Outro municipal intrometeu-se, brutalmente. Duas senhoras, agarrando
os vestidos, fugiram para um portal, espavoridas. E através do rebuliço, da
poeira, sentia-se adiante, melancolicamente, um realejo tocando a “Traviata”.
O faetonte entrou – atrás do dog-cart, onde o homem gordo, a estourar
de fúria, voltava ainda para trás a face escarlate, jurando dar parte do
municipal.
- Tudo isto está arranjado com
decência – murmurou Craft.»
Cap.
X, pág.313
2.
Interpreta
o comentário de Craft, tendo em conta o excerto.
Craft refere-se, de
forma irónica, à forma como as pessoas se organizavam junto da entrada para o
hipódromo, visto que, em vez da «decência» própria de um evento que reunia a
alta sociedade lisboeta, encontrou uma enorme falta de civismo e de decoro.
As pessoas que se
encontravam à porta do hipódromo não sabiam estacionar devidamente as suas
viaturas, impedindo a entrada de outros, e «um dos sujeitos de flor ao peito»
exigia a sua entrada sem pagar, criando uma grande confusão, entre gritos e
ameaças de agressão física, o que originou um clima de insegurança nalgumas
senhoras que aí se encontravam. A contrastar com todo este «rebuliço», ouvia-se
um realejo de fundo que tocava a «Traviata», de forma a transmitir a sensação
aparente de uma ambiente requintado.
A referência do
“[sujeito] de flor ao peito” de que o Sr. Savedra lhe tinha prometido que podia
entrar sem pagar revela, claramente, a maneira de ser do português que tenta
sempre corromper o estabelecido, tentar obter uma “borla”, utilizar uma “cunha”
para seu benefício.
As referências “muro
de quintarola”, “homem gordo”, “berrava”, assim como toda a descrição ao
hipotético cenário de agressão física são ilustrativas da decadência do espaço
e das pessoas que ali estavam e da falta de elegância existente neste
acontecimento da alta sociedade lisboeta.
A (in)”decência”
caracterizada no excerto prova a dicotomia Ser vs Parecer patente na obra e o
quebrar do verniz por todos aqueles que pretendem ascender a um patamar
civilizacional impossível de alcançar pelo exterior.
Excerto 3
– Jantar na Casa dos Gouvarinho
«E o conde, que a admirava também,
gabava-lhe sobretudo o espírito, a instrução. Isso, segundo o Ega,
prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser
estúpida… O conde afirmou logo com exuberância que não gostava também de
literatas; sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na
biblioteca...
[…] Ega protestou, com calor. Uma
mulher com prendas, sobretudo com prendas literárias, sabendo dizer coisas
sobre o sr.Thiers, ou sobre o sr. Zola, é um monstro, um fenómeno que cumpria
recolher a uma companhia de cavalinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas.
A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.»
Cap.
XII, pp.397-398
3. Clarifica a opinião de Ega sobre as mulheres.
João da Ega defendia uma opinião muito conservadora acerca das
mulheres, referindo que o dever delas «era primeiro ser bela, e depois ser
estúpida».
Para ele, a mulher deveria ser encarada apenas como um elemento
decorativo, destituída de qualquer instrução ou cultura literária. Aliás, era
extremista ao ponto de considerar a mulher «com prendas literárias» «um
monstro». Assim, no seu entender, «a mulher só devia ter duas prendas: cozinhar
bem e amar bem», ou seja, remeter-se à sua função de boa esposa e boa dona de
casa, desprovida de opiniões sobre qualquer assunto que envolvesse alguma
demonstração da sua inteligência.
Esta opinião contrasta com a personalidade e caráter visionário
de João da Ega no que concerne à literatura, tal como com a relação de amizade
e admiração que tem por Maria Eduarda, mulher culta e inteligente, motivos que
levam a questionar a veracidade desta opinião.
Poder-se-á, então, concluir que Ega tece este comentário com
ironia, e no sentido de provocar a exposição de ideias, de modo a perceber as
opiniões alheias.
Excerto 4
– Os Jornais
« - Quer cem mil réis por tudo
isso? – perguntou Carlos.
O Palma ficou um momento indeciso,
ajeitando as lunetas com os dedos moles. […] Ega acercou-se, tocou com bonomia
no ombro do jornalista:
- Cem mil são uma linda soma,
Palma amigo! E olhe que se lhe oferecem por delicadeza consigo. Porque
artiguinhos como este da «Corneta», apresentados na Boa Hora, levam à
grilheta!... […]
Palma, com a cabeça baixa,
desfazia torrões de açúcar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por
dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que
aceitava os cem mil réis…»
Cap.
XV, pág. 541
4.
Eça de
Queirós serve-se das personagens-tipo para criticar a sociedade portuguesa.
Explica a importância da personagem Palma Cavalão na construção da crítica
neste episódio.
Palma Cavalão é o diretor do jornal
«Corneta do Diabo» e surge como símbolo do jornalismo em Portugal.
Esta personagem tipifica o jornalista
corrupto, que se deixa subornar, publicando notícias difamatórias sobre pessoas
conceituadas da sociedade – Carlos da Maia e Maria Eduarda. Representa o meio
jornalístico barato, escandaloso, sem escrúpulos e decadente de Lisboa. Palma
Cavalão é desonesto e encara o jornalismo como uma forma de ganhar dinheiro,
desrespeitando os princípios básicos do jornalismo – a veracidade e o interesse
geral das notícias.
Representa ainda a hipocrisia
existente neste meio, já que refere que aceita “os cem mil réis” “por ser entre
cavalheiros, e com amizade”, quando, na realidade, o que lhe interessa é
receber simplesmente aquela quantia de dinheiro.
Assim, é através desta personagem e
do episódio dos Jornais que Eça de Queirós apresenta o jornalismo decadente e
corrupto do nosso país.
Excerto 5
– Sarau da Trindade
«(…) – o Cruges, com o nariz
bicudo contra o caderno da sonata, martelando sabiamente o teclado. Foi então
subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada,
quase vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cansadas, bocejavam por
trás dos leques.
[…] O Cruges… O nome correu
entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição dele, aquela coisa
triste?
- É de Beethoven, srª D.
Maria Cunha, a “Sonata Patética”.»
Cap.
XVI, pág. 596
5. Refere de que modo este excerto contribui para
a crítica que Eça pretende fazer à sociedade portuguesa.
O excerto
refere-se ao episódio do sarau no Teatro da Trindade, evento que mostra em todo
o seu esplendor o gosto convencional e fossilizado dos portugueses, dominados por
valores caducos, enraizados num sentimentalismo educacional e social
ultrapassados.
Neste sarau, o
maestro Cruges exibe todo o seu talento ao tocar a «Sonata Patética» de
Beethoven, no entanto a plateia que assiste ao espetáculo revela uma grande
falta de cultura, já que demonstra um profundo desinteresse, assim como o
desconhecimento da composição que está a ser tocada.
As senhoras que
ainda assistiam ao sarau mostram-se entediadas e aborrecidas, bocejando,
ilustrando a falta de espírito crítico que caracterizava a sociedade
portuguesa, assim como a desvalorização de tudo o que não era convencional.
Esta situação
de desfasamento entre a cultura que as personagens parecem ter e a que têm
realmente, faz com que este momento, que seria dos poucos bons momentos do
Sarau, se torne num fiasco.
Excerto
6 – Passeio Final
«Riam ambos. Depois Carlos,
outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira
da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar
e nada recear… Não se abandonar a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo
aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as
naturais mudanças de dias agrestes e de dia suaves. E, nesta palidez, deixar
esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e
decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo… Sobretudo não ter
apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.»
Cap.
XVIII, pág.715
6. Comprova que a vida de Carlos da Maia foi
marcada pelo «fatalismo muçulmano».
Ao longo da obra Os Maias
percebemos que a personagem Carlos da Maia vai perdendo o fulgor e entusiasmo
que a caracterizava na sua juventude para se tornar num acomodado da sociedade.
Por conseguinte, vai aceitando com
tranquilidade as contrariedades que foram surgindo ao longo da sua vida:
primeiro, a relação incestuosa com Maria Eduarda; depois a morte do seu avô;
por último, a separação de Maria Eduarda.
Ao contrário do seu pai, que suportou
a dor da perda dos dois pilares da sua vida – a mãe e a esposa -, Carlos tenta
prosseguir com a sua vida, aceitando com naturalidade essas mudanças como se
fizessem parte de um destino ao qual não pode fugir. Deste modo, desiste de
lutar, de estabelecer objetivos na sua vida e decide vivê-la de acordo com
aquilo que vai surgindo, deixando «o Eu ir-se deteriorando e decompondo até
reentrar e se perder no infinito Universo…».
Em suma, se Carlos não tiver
“apetites”, também não terá “contrariedades”, assim, se “nada desejar e nada
recear”, a sua vida terá esse desenrolar calmo que agora se impõe.
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